
Um artigo publicado no semanário Expresso, em 29 de Outubro de 2016, de autoria de Cristina Bernardo Silva, dá-nos conta de um estudo realizado em Portugal sobre a utilização do placebo em pessoas com lombalgias crónicas, informadas de que estavam a tomar umas cápsulas que apenas continham microcristais de celulose, uma substância inerte e sem qualquer princípio activo (Silva, 2016). Este estudo foi publicado na revista científica
Pain e está a gerar alguma espectativa na comunidade científica sobre a “utilização ética do placebo”, no dizer de Cláudia Carvalho – a coordenadora do estudo – citada no artigo. Para além destes aspectos da investigação médica e dos tão controversos aspectos éticos dos ensaios clínicos, são referidos alguns aspectos bastante interessantes de outra natureza e que têm a ver com o ambiente e a relação terapêutica, a gestão de expectativas e os seus efeitos complementares aos chamados medicamentos de alívio. Sabe-se há muito que os efeitos da relação terapêutica ampliam os efeitos dos medicamentos e isso pode ter um impacto significativo na diminuição da terapêutica farmacológica e são, por exemplo, os médicos psiquiatras os primeiros a recomendar esta
aliança terapêutica (APA, 2004).
Ted Kaptchuk (1949), professor de Medicina em Harvard e um dos co-autores do estudo, salienta que o “efeito placebo é o benefício que os doentes recebem do encontro terapêutico, incluindo os seus símbolos, rituais e interações humanas. Trata-se, fundamentalmente, de como a esperança interage com os cuidados médicos” (citado por Silva, 2016).
O que é que estas novidades podem trazer de novo para a enfermagem?
Se não fosse parecer presunção, arrogância e pouco elegantes no trato com aqueles que temos como parceiros e aliados nos contextos dos cuidados de saúde, até poderíamos responder: basicamente, nada! Mas não será esta a resposta mais sensata e mais conveniente para uma profissão do cuidar centrado na pessoa e que está constantemente a invocar a parceria e o trabalho de equipa como via para a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde. A abordagem mais correcta parece ser, pois, a da reflexão, no sentido crítico, e da interrogação sobre nós próprios. Como lemos hoje, estes avanços da investigação médica para campos um pouco mais estranhos aos terrenos laboratoriais, dos ensaios clínicos (às vezes de ética e legalidade duvidosas), do nível mais positivista dos tecidos e das células, da acção dos fármacos no tratamento das patologias? Não que haja novidade naquilo que chamam de
relação médico-doente, mas uma emergência, ainda pouco notória do interesse dessa relação. A percepção que temos da tradicional
relação médico-doente, continha muito do que se parece ter perdido na mais moderna medicina: uma relação de afecto, e no conhecimento profundo da vida da pessoa, baseada nas narrativas que atribuem significado aos acontecimentos, na observação, no toque, na palpação, na conversa tranquila e tranquilizadora, no aproveitamento dos recursos, saberes e mezinhas caseiras… Esta medicina do antigamente, abundantemente descrita na literatura ter-se-á perdido bastante mercê dos avanços da ciência positiva e do desenvolvimento tecnológico (alguém dizia: ‘agora, os médicos já não olham para os doentes nem os ouvem; pedem exames’. É predominantemente verdade, embora aqui e ali surjam movimentos que valorizam outros aspectos dos quais os mais relevantes dos últimos trinta anos tenha sido a produção literária do recentemente desaparecido Oliver Sacks e o movimento da Medicina Narrativa iniciado por Rita Charon.
E na enfermagem? A percepção que nos dá é a de que coexistem dois mundos paralelos: o disciplinar que se ocupa do conhecimento, da construção dos saberes teóricos e próprios da enfermagem através da investigação; e o profissional, muito ancorado nos saberes médicos e nos procedimentos organizacionais. Este modo como a enfermagem tende hoje a colocar-se faz com que os enfermeiros adoptem predominantemente o papel de colaboradores – ou mesmo substitutos – dos médicos nas actividades de diagnóstico e terapêutica e, também, das instituições de saúde, de quem assumem a função de autoridade, de vigilância, de controlo dos doentes com vista – talvez isto nunca chegue a ser explícito ou tornado verdadeiramente consciente – a uma diminuição dos tempos de internamento. Ora, não é bem desta enfermagem que nos fala a história e os referenciais subscritos pelas academias e organizações profissionais dos enfermeiros.
Nas diferentes filiações da profissão, a filiação médica é sem dúvida uma componente importante. No caso de Portugal, até poderíamos falar de “colonização” da enfermagem por parte dos médicos. Ao contrário do que se passou em vários países, sobretudo Inglaterra, Estados Unidos e Canadá, o ensino da profissão no nosso país iniciou-se e perdurou no domínio absoluto dos hospitais, que formavam os “seus” enfermeiros, e sob a direcção dos médicos. Esta realidade durou até à primeira metade da década de 60 do século passado, altura em que há a primeira verdadeira reforma do ensino de enfermagem. Será curioso notar que várias escolas de enfermagem adotaram o nome dos médicos seus fundadores (Artur Ravarra, Bissaya Barreto, Ângelo da Fonseca, Lopes Dias…).
Apesar de já estarmos num período de desenvolvimento teórico da enfermagem (uma espécie de ‘renascimento’ das bases lançadas por Nightingale, praticamente um século antes) que procurava um saber próprio da enfermagem – uma ontologia e uma epistemologia consistentes – essa influência tardou a chegar a Portugal e só nos anos 1970 começa a ser notada na formação e sem particular evidência ao nível da prática profissional.
Temos a percepção de que após uma tendência de mudança que caracterizou o início dos anos 1980, a enfermagem se tem vindo lentamente a afastar deste referencial que coloca a pessoa e o seu bem-estar no centro da sua acção em favor de uma prática mais medicalizada, mais intermediada pelos recursos tecnológicos e mais afastada das vivências da pessoa a quem se prestam cuidados. Se aquilo que ainda é uma percepção de uma tendência se confirmar, não é difícil imaginar o fim de uma profissão por abandono das suas matrizes essenciais. Estamos a tempo de uma espécie de movimento de salvação da enfermagem?
Quem se move pelos campos da produção teórica e da investigação pode observar que existe uma forte vontade de crescimento na área matricial do cuidar, da importância da relação, no ‘empowerment’, na valorização da capacidade da pessoa e da responsabilidade pelo seu auto-cuidado, na educação para a saúde, para o bem-estar, para a autonomia… Mas, quem igualmente se move, muitas vezes como utilizador dos serviços de saúde ou familiar acompanhante, constata uma realidade diferente. Poder-se-ia dizer que, salvo honrosas excepções, que os profissionais titulados como enfermeiros revelam uma prática distante do seu referencial e do que é suposto ser ensinado e aprendido nas escolas. Bastaria a verificação da lista de competências preconizada pela Ordem dos Enfermeiros, para constatar que, principalmente no contexto hospitalar, há, com demasiada frequência, pouca enfermagem nas diferentes interacções ao longo do dia, e com menor frequência situações em que não há enfermagem ou mesmo um comportamento, no mínimo,
pouco apropriado.
Partimos. Vamos. Somos.
Com estas três palavras, que tanto podem ser lidas como uma exortação ou como uma simples constatação de estado, termina Sebastião da Gama o seu poema Pelo sonho é que vamos. Sebastião da Gama, poeta que cantou a Arrábida, o amor e a vida, teve outra(?) vertente eventualmente menos conhecida: foi um extraordinário pedagogo na sua curta, mas intensa vida.
Utilizemos este verso, estes verbos que evocam ecos de outras poesias caminheiras a construírem os seus próprios caminhos, para olhar e analisar os caminhos da enfermagem e compaginar esse olhar com a notícia que provocou este escrito e cujo maior relevo será a consciencialização de alguns médicos que não basta dar o medicamento correcto, na dose certa, no momento certo e pela via mais adequada e que a forma como se dá esse medicamento, a relação que se estabelece, o modo como se está com a pessoa pode fazer toda a diferença.
Quando cautelosamente respondemos que isto nada traz de novo ou ensina aos enfermeiros e às enfermeiras, a cautela será apenas por delicadeza. A enfermagem tem na sua genética estes saberes e estas práticas. Mas, por outro lado, deveremos estar assim tão tranquilos à sombra dessa matriz?
Fica como desafio para discussão e posteriores desenvolvimentos.
Referências
APA – American Psychiatric Association (2004).
Pratice guideline for the tretement of patients with schizofrenia 2ª Ed. [http://psychiatryonline.org/pb/assets/raw/sitewide/practice_guidelines/guidelines/schizophrenia.pdf]
Brauser, Deborah (2016). Taking a Placebo, Even Knowingly, May Decrease Chronic Lower Back Pain.
Medscape Medical News, October 28, 2016 [http://www.medscape.com/viewarticle/871092?nlid=110384_3681&src=wnl_dne_%%=v(@date)=%%_mscpedit&uac=%%UAC%%&impID=%%JOBID%%&faf=1]
Carvalho, Cláudia; Caetano, Joaquim Machado; Cunha, Lidia; Rebouta, Paula;
Kaptchuk, Ted J.; Kirsch, Irving (2016). Open-label placebo treatment in chronic low back pain: a randomized controlled trial.
Pain, Published online October 14, 2016 [http://journals.lww.com/pain/Abstract/publishahead/Open_label_placebo_treatment_in_chronic_low_back.99404.aspx]
Silva, Cristina Bernardo (2016). Placebo alivia mesmo quem sabe que é falso.
Expresso, 29 Outubro 2016, p. 24.