quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Cuid'Arte

Sigo habitualmente alguns sites relacionados com a chamada "Medicina Narrativa". É uma designação que não me parece boa, por ser redutora, mas o que me interessa é o conteúdo e o que ele pode interessar aos profissionais de saúde em geral e, em particular, aos enfermeiros. Se pesquisarmos por Nursing Narrative ou Narrative Nursing, encontramos muitos milhares de referências, ainda que nem todas se enquadrem na perspectiva que esta expressão designa.
Serve esta introdução para dar conta do prazer que me deu ler um belo texto (perdoo-lhe o 'Acordo Ortográfico'), publicado ontem, 10 Setembro, 2019, no site Comunidade Cultura e Arte, com o título Medicina e arte: uma ligação necessária, de autoria de Teresa Tomaz, uma médica de família.
É um testemunho e uma reflexão com alguns alertas para certas armadilhas da comunicação que todos os profissionais deviam ler e refectir sobre.
Muito do que é aqui escrito reforça o sentido de algumas das coisas que faço e de outras que não faço e desejaria fazer, na formação dos enfermeiros. 
A ideia de que, para cuidar de pessoas, é preciso "ter mundo", isto é, conhecer muito mais do que aquilo que se aprende nos manuais e nas aulas, aquilo que muito impropriamente se designa por "matéria" e que é passível de avaliação (?) através de uma prova ou de um exame, deve ser o esteio principal da formação. Isto é uma teoria geral. Tudo o resto, sendo imprescindível, será sempre acessório. O contrário é uma teoria errada.
Há já muito trabalho produzido nas duas últimas décadas, com mais visibilidade no campo da Medicina. Em Portugal, destaco o papel do professor João Lobo Antunes, ainda que, ao que julgo saber, não utilizasse a expressão Medicina Narrativa - o nome deve-se a Rita Charon, uma médica internista americana a quem se deve a iniciativa desta corrente dentro da Medicina, a nível global. 
A enfermagem tem na sua essência esta matriz. O cuidado orientado e centrado na pessoa implica considerar de forma primordial o que a pessoa diz sobre si própria, sobre as suas angústias, o seu sofrimento e sobre o significado que a experiência tem na sua vida.

Quando médicos e enfermeiros trabalharem nesta perspectiva, algo estará a mudar nos cuidados de saúde e, provavelmente, na sociedade.
Enquanto profissionais de distintas profissões andarem entretidos a discutir a autoridade e o mando e as fronteiras das suas competências e a pertenças dos actos e das intervenções, não pode ser verdade que prestam cuidados de saúde orientados para a pessoa.



É difícil definir a solidão que define o trabalho dentro dum consultório. Os profissionais de saúde trabalham em equipa, e os cuidados de saúde primários não são exceção. Porém, fora dos corredores do hospital, o trabalho assistencial dum médico ou dum enfermeiro de família exige várias horas dentro duma sala a sós com o doente ou o doente e a sua família. Depressa percebi que as pessoas traziam consigo muitos motivos de consulta, e alguns não estavam diretamente relacionados com queixas físicas ou psicológicas. Às vezes relacionavam-se com problemas familiares, financeiros ou sociais. Recordo as primeiras consultas que conduzi sozinha com um receio que me perturbava: temia ter de dar uma má notícia, de lidar com emoções fortes, com tristeza, raiva, angústia.

O artigo pode e deve ser lido na íntegra aqui.





sexta-feira, 5 de julho de 2019

Grande desafio!




(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me
uma pérola no coração. Mas estou só, muito só,

não tenho a quem a deixar.)

- Al Berto  - Salsugem

Hoje quero apenas deixar um registo de um grande acontecimento.
A organização deste evento - os estudantes do 3º ano do CLE mais a Comissão Científica - proporcionou-me uma experiência extraordinária, aquilo a que se chama uma peak experience, ou seja, um momento de crescimento. Por isso, sinto-me grato. Não sei bem a quem, porque isto não é simples de contar. É a minha experiência toda, hoje recapitulada com tanta gente importante a visitar-me e a dizer-me coisas de tantos anos.
Entrei de manhã no auditório e começo a reconhecer caras (e os nomes a fugirem-me da memória porque algumas não via há muito) de antigos alunos e começaram os abraços com números de vinte e tal e trinta e tal anos, quase sussurrados, não fosse alguém dos mais novos perceber que já cá andamos há tantos anos… Mas quando se reúnem na mesma sala estudantes actuais com a mãe e sogro que foram antigos alunos estamos inevitavelmente descobertos e ficamos todos libertos…
Mas não sei se é bem disto que quero escrever. Aliás, não sei nada sobre o que quero escrever e talvez me deixe ir nesta desordem dos sentidos e do pensamento, como a água que corre por onde calha.
Sou habitualmente muito ligado à história e sou-o de uma forma que pretende compreender o olhar de quem vive determinados acontecimentos. Afinal o que é que podemos saber da história do mundo? Apenas o que alguém nos conta. Ou que alguém deixou registado, ou o que julgamos que dizem os objectos… Hoje falava-se de Cuidados de Saúde Primários e passou-se em revista a sua história e (hélas!) falou-se de narrativas e eu a fazer viagens no tempo e a reencontrar pessoas que estas pessoas de agora nunca terão encontrado. É melhor explicar isto.
Entrei para o Curso de Enfermagem em Janeiro de 1977 e saí em Março de 1980. Durante este curso, aconteceu Alma-Ata e foi criado o SNS português. Na altura nem se notou assim muito, mas já se fazia estágios em Centros de Saúde que tinham várias "valências" e diversas extensões à comunidade, em particular nos meios rurais. A Saúde estava numa Secretaria de Estado no Ministério dos Assuntos Sociais e as pessoas iam aos Serviços Médico-Sociais dizendo que iam ao "médico da Caixa", porque se habituaram a chamar assim desde tempos antigos da "Caixa de Previdência".
Hoje falou-se várias vezes de "paradigma" e de "mudança de paradigma" e levei quase todo o dia a pensar que, na verdade a verdadeira mudança de paradigma em termos de cuidados de saúde da população tinha acontecido depois de 1971, quando as pessoas sem posses começaram a poder aceder aos Centros de Saúde em vez de terem disporem apenas da assistência caridosa, mais ou menos por via da acção das Misericórdias espalhadas pelo país. Mesmo assim, a história não é assim tão simples de contar, porque coexistiam diferentes modalidades, incluindo uma acção profiláctica do Estado no domínio do que era na época o conceito de Saúde Pública.
Quero voltar ao final dos anos 70 e ao Curso de Enfermagem, o primeiro de um novo plano de estudos, o de 1976, que terá sido porventura o mais revolucionário da história do Ensino de Enfermagem em Portugal. Dois meses após o início do curso, num primeiro ano todo ele dedicado ao estudo de "O Homem - A Sociedade - A Saúde", íamos em pequenos grupos, quase viver para uma comunidade urbana ou rural durante quatro semanas, já com conhecimentos básicos enfermagem (Enfermagem I - Enfermagem na Comunidade), Psicologia, Sociologia, Nutrição...  Mais de quarenta anos depois, ainda acho isto bastante avançado. É verdade que ainda não aprofundávamos muito os aspectos conceptuais da enfermagem que não iam muito além do modelo de Henderson, estrondosamente parasitado e ofuscado um modelo de Processo de Enfermagem da brasileira Wanda Aguiar Horta que tinha toda a vantagem de se exprimir em português e era doutora em enfermagem. Já estou a ir por outros caminhos e um dia hei-de escrever sobre isto. O que me importa hoje é mesmo a Enfermagem e a Comunidade (o Curso de Pós-Licenciatura e Especialização em Enfermagem Comunitária também se encerrava hoje) e o turbilhão de emoções que ainda não consigo sossegar. É que, apesar de me ter iniciado profissionalmente na enfermagem hospitalar, a ideia da comunidade, a visão da autonomia da profissão sempre se realizou na enfermagem na comunidade. Toda a minha vida discuti isso com tanta gente e hoje tive testemunhos de projectos na comunidade que estão na linha do que sempre sonhei.
Este encontro "+Enfermagem", na forma como foi organizado, como decorreu e pela qualidade científica e pragmática enche-me a alma, ou o coração ou seja lá onde for que se aloja esse sentimento misto de orgulho e gratidão. Senti isso também em algumas colegas e em muitos estudantes. Vários o verbalizaram e as lágrimas que por ali correram foram eloquentes. Senti, acho que pela primeira vez em muitos anos, uma partilha e uma coesão que, nos meus sonhos surge como uma espécie de exigência mínima para que alguma coisa possa ter o nome de "Escola".
Ontem andei com uma t-shirt trazida do FOLIO de Óbidos com a seguinte inscrição:

Há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro a ver estabelecidas nas nossas cidades… Aspiro mais do que espero. 
(Thomas Morus, no final de Utopia).



Talvez signifique alguma coisa.









quinta-feira, 21 de março de 2019

Antonio Damasio: A busca para entender consciência




Into the black box. Muitas das teorias sobre o que somos e o que comunicamos, sobre a forma como representamos o real foram desenhadas no pressuposto de que não era possível observar a mente em funcionamento. O estudo da mente tem-se feito através dos outputs sejam eles respostas comportamentais ou fisiológicas, mais ou menos à semelhança do que acontece com a caixa negra. A mente continua a ser algo muito complexo que de aproximação em aproximação vai sendo desvendado os seus mistérios. Os estudos no âmbito das neurociências vai revelando como vemos e representamos o mundo a partir da consciência do nosso corpo e dos nossos processos. O nosso cérebro parece estar equipado para preencher espaços em branco e isso pode até explicar as diferentes perspectivas sobre uma mesma realidade, mas fica-me tanto para compreender.
Qual será o problema da humanidade? Das guerras, da fome, do fanatismo?... Será do córtex?

Conferência de António Damásio

O Cérebro, o Corpo, e a Naturalidade da ConsciênciaCiclo Diálogos do cérebro – encontros de mentes diversas

Dom, 2 junho 2019 -  18:30 até 19:30 Entrada gratuita sujeita à lotação do espaço
Fundação Calouste Gulbenkian

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Os limites da relação


Tanto os estudantes como os profissionais colocam muitas vezes a questão sobre o estabelecimento dos limites, o não envolvimento afectivo com a pessoa ou a família que beneficia dos cuidados. O assunto é complexo, mas talvez possa ser analisado em duas frentes problemáticas. Por um lado, estão as questões de bem-estar e segurança do enfermeiro e por outro, as questões éticas da profissão.
Alguns estudos mais recentes têm incidido sobre os problemas emocionais e de desgaste profissional associados à síndrome de burnout, e mesmo que as manifestações não sejam tão explícitas, detectam-se sentimentos de negatividade, face à profissão, manifestados por comportamentos de evitamento dos pacientes ou a redução do contacto a actividades em que a técnica e a tecnologia servem de objectos intermediários.
A ética da profissão exige que se ofereça ao paciente o nível mais elevado de cuidados, não por qualquer favor ou compaixão do enfermeiro, mas porque é um direito seu. Os enfermeiros prestam um serviço com determinadas características, que é único e exclusivo da enfermagem, com regulação legal e deontológica. A natureza dos cuidados implica normalmente uma grande aproximação da pessoa que chega muitas vezes à zona de intimidade física e sobretudo emocional. Não é fácil para ambas as partes.
Para o paciente isso significa reconhecer no profissional, um grande aliado e entregar-se confiando que a sua dignidade será respeitada. Para o profissional é sempre um grande desafio no qual terá de gerir também as suas emoções. O cliente poderia ser um filho nosso, um pai, uma mãe, um avô, mas não o é. E talvez esse seja, para o enfermeiro, o primeiro e o importante limite da relação terapêutica. Ainda que seja reconhecido, desde Peplau um papel de substituto – o enfermeiro desempenha, temporariamente, o papel de alguém que falta à pessoa – essa é uma representação consciente com fins de ajuda terapêutica, que só se consegue quando o enfermeiro tem uma elevada consciência dos limites da relação, mas não só. Consegue comunicá-los ao paciente sem ambiguidades.
A problemática dos limites da relação profissional está fortemente ligada a outros aspectos da aprendizagem como o auto-conhecimento e a auto-consciência. Como se podem desenvolver essas aprendizagens?
Os jovens estudantes de enfermagem são muitas vezes lançados precocemente no contacto com a profissão real com tudo o que ela tem de belo e também de assustador. Conhecem boas práticas e também muito encorajamento a práticas e atitudes pouco correctas por parte de alguns profissionais. A sua impreparação e até imaturidade emocional confere-lhes uma grande vulnerabilidade. Podem até questionar-se, ter consciência das suas limitações, mas o mais natural é que, muito legitimamente, respondam de forma defensiva e estruturem esses mecanismos, porque funcionam.
Wendy McIntosh é especialistas nesta área dos limites da relação profissional com bastante experiência na formação de enfermeiros na área da saúde mental Nos cursos e workshops que faz em vários locais da Austrália e também do Canadá, analisa os depoimentos dos formandos, após a formação, nos quais sobressai, numa parte a referência à consciência da diminuição do seu estado de negatividade face aos clientes e, para outros, uma espécie de alívio face ao estabelecimento de limites. Quando esses limites são reflectidos e interiorizados, o comportamento profissional torna-se mais natural, distendido, espontâneo. Podemos imaginá-lo também, mais próximo e mais seguro.
Quando falamos do uso terapêutico do self como uma intervenção de natureza relacional em que o enfermeiro usa a sua própria pessoa como instrumento de trabalho, isso é bem mais complexo que escrevê-lo assim numa frase. O que isso envolve está muito para além do alcance do que é possível atingir com aulas, mesmo que sejam práticas ou teórico-práticas. O trabalho de desenvolvimento da auto-consciência exige uma entrega do estudante com alguma semelhança com o que reconhecemos no contexto da relação terapêutica. O auto-conhecimento transforma-nos; é um processo de crescimento de desenvolvimento pessoal que não é substituível por informação ou aquisições intelectuais. Carl Rogers chamava a atenção para um curioso paradoxo em que será necessário um conhecimento e uma aceitação de si próprio para poder mudar. É essa mudança para um nível de auto-consciência que nos capacita para gerir os limites e usar terapeuticamente o self.
Mc Intosh acredita que este processo de relação com os limites, ao contrário do que talvez se pudesse imaginar, é favorecido por uma boa compreensão da teoria do apego ou da vinculação, iniciada pelo psicólogo do desenvolvimento, John Bowlby, a partir da sua primeira publicação em 1958. Tem particular importância por se tratar de relações assimétricas que correm o risco de se tornarem paternalistas e superprotectoras em vez de promoverem a autonomia. A referida autora, cita Nancy Schimelpfening, para nos ajudar a compreender a noção de limites aplicada ao domínio pessoal e profissional:
Os limites são o espaço emocional e físico que colocamos entre nós e os outros. Definir limites adequados é importante para a nossa saúde mental. Quando não são definidos os limites apropriados, corremos o risco de nos tornarmos muito distantes ou muito dependentes dos outros (*).
 (Schimelpfening, 2007, cit. em Wendy’s blog)

Referências
McIntosh, Wendy (2013). Are you Crossing the Line? In Dr Wendy's Blog, Nursing, 8 April. http://davaar.com.au/dr-wendys-blog/crossing-the-line/
Rogers, Carl (1980). Tornar-se Pessoa. 5ªed., Lisboa: Moraes Editores.


(*) [Boundaries are the emotional and physical space that we place between ourselves and others. Setting proper boundaries is important to our mental health. When appropriate boundaries are not set, we run the risk of becoming either too detached from or too dependent upon others.]

sábado, 29 de julho de 2017

Metáforas e Narrativas

Acabo de ler um pequeno artigo onde Priscilla Mainardi, uma enfermeira americana, se debruça sobre o modo como pontos de vista diferentes podem transformar a realidade e o significado de uma doença e do internamento hospitalar.

Rooms can confine us
or give us a special place to inhabit.


Ressalta daqui a importância de dar relevo às narrativas das experiências de cada um como forma de compreender o significado que o próprio sujeito atribui à sua vivência e como a inscreve existencialmente no seu eu-autobiográfico como diria António Damásio.

Ver artigo:

Rooms with a viewpoint: The metaphorical power of hospitals and medical complexes in illness narratives By Priscilla Mainardi, RN

July 16, 2017

terça-feira, 1 de novembro de 2016

O misterioso “efeito placebo”

Um artigo publicado no semanário Expresso, em 29 de Outubro de 2016, de autoria de Cristina Bernardo Silva, dá-nos conta de um estudo realizado em Portugal sobre a utilização do placebo em pessoas com lombalgias crónicas, informadas de que estavam a tomar umas cápsulas que apenas continham microcristais de celulose, uma substância inerte e sem qualquer princípio activo (Silva, 2016). Este estudo foi publicado na revista científica Pain e está a gerar alguma espectativa na comunidade científica sobre a “utilização ética do placebo”, no dizer de Cláudia Carvalho – a coordenadora do estudo – citada no artigo. Para além destes aspectos da investigação médica e dos tão controversos aspectos éticos dos ensaios clínicos, são referidos alguns aspectos bastante interessantes de outra natureza e que têm a ver com o ambiente e a relação terapêutica, a gestão de expectativas e os seus efeitos complementares aos chamados medicamentos de alívio. Sabe-se há muito que os efeitos da relação terapêutica ampliam os efeitos dos medicamentos e isso pode ter um impacto significativo na diminuição da terapêutica farmacológica e são, por exemplo, os médicos psiquiatras os primeiros a recomendar esta aliança terapêutica (APA, 2004).

Ted Kaptchuk (1949), professor de Medicina em Harvard e um dos co-autores do estudo, salienta que o “efeito placebo é o benefício que os doentes recebem do encontro terapêutico, incluindo os seus símbolos, rituais e interações humanas. Trata-se, fundamentalmente, de como a esperança interage com os cuidados médicos” (citado por Silva, 2016).

O que é que estas novidades podem trazer de novo para a enfermagem? 
Se não fosse parecer presunção, arrogância e pouco elegantes no trato com aqueles que temos como parceiros e aliados nos contextos dos cuidados de saúde, até poderíamos responder: basicamente, nada! Mas não será esta a resposta mais sensata e mais conveniente para uma profissão do cuidar centrado na pessoa e que está constantemente a invocar a parceria e o trabalho de equipa como via para a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde. A abordagem mais correcta parece ser, pois, a da reflexão, no sentido crítico, e da interrogação sobre nós próprios. Como lemos hoje, estes avanços da investigação médica para campos um pouco mais estranhos aos terrenos laboratoriais, dos ensaios clínicos (às vezes de ética e legalidade duvidosas), do nível mais positivista dos tecidos e das células, da acção dos fármacos no tratamento das patologias? Não que haja novidade naquilo que chamam de relação médico-doente, mas uma emergência, ainda pouco notória do interesse dessa relação. A percepção que temos da tradicional relação médico-doente, continha muito do que se parece ter perdido na mais moderna medicina: uma relação de afecto, e no conhecimento profundo da vida da pessoa, baseada nas narrativas que atribuem significado aos acontecimentos, na observação, no toque, na palpação, na conversa tranquila e tranquilizadora, no aproveitamento dos recursos, saberes e mezinhas caseiras… Esta medicina do antigamente, abundantemente descrita na literatura ter-se-á perdido bastante mercê dos avanços da ciência positiva e do desenvolvimento tecnológico (alguém dizia: ‘agora, os médicos já não olham para os doentes nem os ouvem; pedem exames’. É predominantemente verdade, embora aqui e ali surjam movimentos que valorizam outros aspectos dos quais os mais relevantes dos últimos trinta anos tenha sido a produção literária do recentemente desaparecido Oliver Sacks e o movimento da Medicina Narrativa iniciado por Rita Charon.

E na enfermagem? A percepção que nos dá é a de que coexistem dois mundos paralelos: o disciplinar que se ocupa do conhecimento, da construção dos saberes teóricos e próprios da enfermagem através da investigação; e o profissional, muito ancorado nos saberes médicos e nos procedimentos organizacionais. Este modo como a enfermagem tende hoje a colocar-se faz com que os enfermeiros adoptem predominantemente o papel de colaboradores – ou mesmo substitutos – dos médicos nas actividades de diagnóstico e terapêutica e, também, das instituições de saúde, de quem assumem a função de autoridade, de vigilância, de controlo dos doentes com vista – talvez isto nunca chegue a ser explícito ou tornado verdadeiramente consciente – a uma diminuição dos tempos de internamento. Ora, não é bem desta enfermagem que nos fala a história e os referenciais subscritos pelas academias e organizações profissionais dos enfermeiros. Nas diferentes filiações da profissão, a filiação médica é sem dúvida uma componente importante. No caso de Portugal, até poderíamos falar de “colonização” da enfermagem por parte dos médicos. Ao contrário do que se passou em vários países, sobretudo Inglaterra, Estados Unidos e Canadá, o ensino da profissão no nosso país iniciou-se e perdurou no domínio absoluto dos hospitais, que formavam os “seus” enfermeiros, e sob a direcção dos médicos. Esta realidade durou até à primeira metade da década de 60 do século passado, altura em que há a primeira verdadeira reforma do ensino de enfermagem. Será curioso notar que várias escolas de enfermagem adotaram o nome dos médicos seus fundadores (Artur Ravarra, Bissaya Barreto, Ângelo da Fonseca, Lopes Dias…).

Apesar de já estarmos num período de desenvolvimento teórico da enfermagem (uma espécie de ‘renascimento’ das bases lançadas por Nightingale, praticamente um século antes) que procurava um saber próprio da enfermagem – uma ontologia e uma epistemologia consistentes – essa influência tardou a chegar a Portugal e só nos anos 1970 começa a ser notada na formação e sem particular evidência ao nível da prática profissional. Temos a percepção de que após uma tendência de mudança que caracterizou o início dos anos 1980, a enfermagem se tem vindo lentamente a afastar deste referencial que coloca a pessoa e o seu bem-estar no centro da sua acção em favor de uma prática mais medicalizada, mais intermediada pelos recursos tecnológicos e mais afastada das vivências da pessoa a quem se prestam cuidados. Se aquilo que ainda é uma percepção de uma tendência se confirmar, não é difícil imaginar o fim de uma profissão por abandono das suas matrizes essenciais. Estamos a tempo de uma espécie de movimento de salvação da enfermagem? Quem se move pelos campos da produção teórica e da investigação pode observar que existe uma forte vontade de crescimento na área matricial do cuidar, da importância da relação, no ‘empowerment’, na valorização da capacidade da pessoa e da responsabilidade pelo seu auto-cuidado, na educação para a saúde, para o bem-estar, para a autonomia… Mas, quem igualmente se move, muitas vezes como utilizador dos serviços de saúde ou familiar acompanhante, constata uma realidade diferente. Poder-se-ia dizer que, salvo honrosas excepções, que os profissionais titulados como enfermeiros revelam uma prática distante do seu referencial e do que é suposto ser ensinado e aprendido nas escolas. Bastaria a verificação da lista de competências preconizada pela Ordem dos Enfermeiros, para constatar que, principalmente no contexto hospitalar, há, com demasiada frequência, pouca enfermagem nas diferentes interacções ao longo do dia, e com menor frequência situações em que não há enfermagem ou mesmo um comportamento, no mínimo,
pouco apropriado.


Partimos. Vamos. Somos. 
Com estas três palavras, que tanto podem ser lidas como uma exortação ou como uma simples constatação de estado, termina Sebastião da Gama o seu poema Pelo sonho é que vamos. Sebastião da Gama, poeta que cantou a Arrábida, o amor e a vida, teve outra(?) vertente eventualmente menos conhecida: foi um extraordinário pedagogo na sua curta, mas intensa vida. Utilizemos este verso, estes verbos que evocam ecos de outras poesias caminheiras a construírem os seus próprios caminhos, para olhar e analisar os caminhos da enfermagem e compaginar esse olhar com a notícia que provocou este escrito e cujo maior relevo será a consciencialização de alguns médicos que não basta dar o medicamento correcto, na dose certa, no momento certo e pela via mais adequada e que a forma como se dá esse medicamento, a relação que se estabelece, o modo como se está com a pessoa pode fazer toda a diferença.
 Quando cautelosamente respondemos que isto nada traz de novo ou ensina aos enfermeiros e às enfermeiras, a cautela será apenas por delicadeza. A enfermagem tem na sua genética estes saberes e estas práticas. Mas, por outro lado, deveremos estar assim tão tranquilos à sombra dessa matriz?
Fica como desafio para discussão e posteriores desenvolvimentos.

 Referências
APA – American Psychiatric Association (2004). Pratice guideline for the tretement of patients with schizofrenia 2ª Ed. [http://psychiatryonline.org/pb/assets/raw/sitewide/practice_guidelines/guidelines/schizophrenia.pdf]

Brauser, Deborah (2016). Taking a Placebo, Even Knowingly, May Decrease Chronic Lower Back Pain. Medscape Medical News, October 28, 2016 [http://www.medscape.com/viewarticle/871092?nlid=110384_3681&src=wnl_dne_%%=v(@date)=%%_mscpedit&uac=%%UAC%%&impID=%%JOBID%%&faf=1] Carvalho, Cláudia; Caetano, Joaquim Machado; Cunha, Lidia; Rebouta, Paula;

Kaptchuk, Ted J.; Kirsch, Irving (2016). Open-label placebo treatment in chronic low back pain: a randomized controlled trial. Pain, Published online October 14, 2016 [http://journals.lww.com/pain/Abstract/publishahead/Open_label_placebo_treatment_in_chronic_low_back.99404.aspx]

Silva, Cristina Bernardo (2016). Placebo alivia mesmo quem sabe que é falso. Expresso, 29 Outubro 2016, p. 24.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Michel Foucault Poder e Saber

Penso muito sobre de onde me vem tamanha curiosidade sobre os diversos aspectos da loucura. Sempre lembro de me tentarem assustar com aqueles a quem chamavam loucos, mas isso em mim tinha um efeito contrário. Sentia-me atraído pela sua estranha diferença e o que mais queria era perceber como é que eles viam o mundo. Muito antes de começar a estudar estes fenómenos já eu tinha um mundo de interrogações que não sendo ainda científicas, também já não eram as do senso comum. Ouvia falar de que alguns eram internados e presos com coletes de forças e levavam choques eléctricos... E via-os mais tarde regressar com olhos mortiços e os corpos parados e ouvia que estavam melhores, mas eu via-os quase sem vida... Falava-se de que o Joaquim da Alice andava com uma "cisma" e eu via-o encostado a uma parede, calado, com os olhos no chão , num movimento lento e repetido ia escavando um buraco no chão com o bico da bota... Mais tarde comecei a estudar estas coisas. Ainda não desisti.